domingo, 23 de novembro de 2008

ZIGUE-ZAGUE (OU DE SOSLAIO)

Ele estudou em uma das mais renomadas instituições para o curso que escolhera, Psicologia. Desde a época dos estágios curriculares, chamava a atenção por demonstrar uma escuta analítica que, não raras vezes, levava os próprios professores a se sentirem embaraçados. Certamente, o retorno que recebia de alguns professores era algo como "você aprenderá com o tempo, a analisar de outra forma (como eu); aquilo-que-você-vê-e-eu-não-vejo não será tratado na supervisão".

Recém formado, não custou a decidir bater asas por outros locais de produção de saber, outras instituições, rompendo qualquer vínculo com a instituição que o formara. Em poucos anos se deu conta do erro que havia cometido, ou pelo menos, um erro estratégico do ponto de vista de quem quer crescer rapidamente e alcançar certas facilidades. Andarilhou atuando como profissional de saúde, de educação, desenvolveu projetos sociais e empreendimentos na área de comunicação. Em menos de cinco anos encheu-se de tudo e com o rabo entre as pernas, foi procurar alguns antigos professores, em suas associações de formação continuada. Nesses locais, o diploma do curso superior, aquele mesmo que nunca contribuiu para a inserção do profissional no mercado de trabalho, é desconsiderado e em seu lugar, o profissional passa os anos correndo atrás de certificações semestrais que o elevem ao status de especialista em pagar cursos.

Ouviu de uma professora que não seria aceito naquela associação, pois a sua carreira até então mostrava que ele mantivera pouco envolvimento com os valores mais puros preservados naquele local. Foi dito que ele parecia andar em zigue-zague, sem firmar-se numa prática que lhe garantisse o ingresso a um dos templos de perpetuação dos saberes e práticas psi, onde realmente se poderia alcançar o reconhecimento (status) tão cobiçado.

Frustrou-se por ouvir aquilo e deu-se o direito de discordar, demonstrando que as suas práticas eram múltiplas e não lineares, mas que levavam todas à construção de um saber que merecia respeito. Saiu de lá e no semestre seguinte participou do processo de seleção para o programa de mestrado de uma renomada universidade pública na sua cidade. Foi na preparação para a vida acadêmica que conheceu o professor que mudaria a sua perspectiva sobre o ziguezaguear. Já na primeira aula do curso, o professor leu a conferência preparada para uma palestra, na qual apresentava um homem catatônico, o corpo todo enrijecido, a cabeça sempre apontando para o céu. Ele estava internado em um hospital psiquiátrico e pelo seu diagnóstico, não sairia de lá a menos que algo muito inusitado acontecesse. Um cão sem dono sempre roçava as suas pernas e o lambia meio de soslaio. O homem mantinha-se rígido dia após dia, olhando para nada além das nuvens no céu. Rigidez apontando para fluidez, catatonia endereçada à fruição. O cachorro parecia nem compor o cenário. Um dia o cachorro foi atropelado na rua e aquele mesmo homem
andou passo a passo em direção à rua, cruzando os muros e portões, pegou o cão em suas mãos e fez os curativos necessários, até que o cão saísse andando por aí. O cão não se prendeu à bondade do homem que ele vivia rondando e lambendo; ao invés disso, saiu andando em zigue-zague, conforme podia, sem se preocupar com o que viria adiante, ou com o que lhe ocorrera no passado.

Ao final da aula, ele contou sobre sua trajetória profissional para o professor, contou de seus descontentamentos e de como não conseguia dialogar com as convicções de muitos de seus pares. O professor fez a seguinte observação: "Você está andando em zigue-zague? Seria legal se estivesse mesmo. Você entende? Mas você acha que está mesmo andando em zigue-zague?" Pensando com calma, ele percebia que sim, mas só em parte. Não andava se escorando nos outros ao seu lado, andava meramente desinteressado pelo que deixava atrás de si e pouco confiante no que lhe surgia pela frente. O cão sem dono que ele era não lambia pernas assim tão a esmo, não inventava ainda novas formas de caminhar, ainda mijava sempre no canto do muro.

Naquele dia, voltou pra casa pensando em seu filho recém nascido. Acomodou um sorriso discreto no canto da boca, quando percebeu que a preservação de sua identidade já não era mais interessante. Seu filho o ensinava a ocupar outros lugares; passava a sentir cada vez mais que não era ele o centro do jogo, nem os outros ao seu redor, nem as suas ocupações pessoais. Seu filho, um pequeno filhote de raças misturadas, ensinava que a vida era algo sem rosto, sem status, sem prazo para acontecer. Seu filhote o ensinava a viver isso, escorando em quem estiver ao lado (não disperdiçando a chance para algumas lambidas). Andar em zigue-zague poderia continuar sendo visto com certas reservas pela Grande Associação na qual tantos ainda vão para "se formar". Mas ele já não precisava mais de algo que a Psicologia, de fato, não lhe daria; ele estava pronto para pensar a vida sem as barreiras do corpo, dos fluxos de entrada e de saída, dos acontecimentos de "natureza interior" e de "natureza exterior", dos fenômenos fisiológicos em oposição aos mentais/afetivos. A vida só passa por isso tudo de soslaio... enquanto não se deixar capturar.

10 comentários:

Anônimo disse...

Não tenho muito a dizer sobre ser cão sem dono ou sobre andar em zigue-zague, mas concordo totalmente com o poder das lições proporcionadas pela nossa cria, pelo nosso rebento. É tudo no tempo dele, sem tempo certo. O tempo é do amor e da disponibilidade. É tudo eternizado pelos nossos olhares admirados e orgulhosos. É tudo urgente para atender aos choros manhosos e irritados. É tão forte e intenso que tem o poder de mobilizar o mais sem dono dos cães. Beijo.

Cassandra Mello disse...

ah, que coisa bonita!

e pronto, linkei. muah!

Mamelucos disse...
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Mamelucos disse...
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Mamelucos disse...
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Mamelucos disse...
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Mamelucos disse...

lindo demais mesmo.

Mamelucos disse...

Vim ler seu texto. Gostei bastante, mas fiquei muito encantada mesmo com o comentário do Guinga. Muito.
O tempo é esse. desse que falávamos.
encantador.
um beijo.

Mamelucos disse...

o tempo que não é mais o tempo passado e nem o tempo da ausência e que a suporta.
é esse tempo. o tempo que coisa nenhuma dá. do corpo sem limites. do novo pelas narinas. da compreensão. Do olhar sempre encantado pela proxima novidade.
pelo compartilhamento, pela preocupação.
gostei muito.

Gabriela Galvão disse...

Uma vz uma piscina olímpica com raias postas estava dando sopa, o dia era nublado, deu vontade de nadar 'costas', ficar olahndo pro céu.

E eu ia bem rente à raia, pra olhar pro céu.

E uma amiga me olhava.

Saih e ela disse que eu nadei torto, nadei feio, em zigue-zague.

Eh q a raia se soltou, ficou bailando.

E eu disse que tanto melhor: eu havia nadado mais. Eu havia olhado mais pro céu, escutado mais a minha respiração alta.

Bisous