quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

LÁPIS E CANETA

Mais um daqueles textos que me vem na cabeça e gritam p/ serem escritos, sempre vêm em intervalos de trabalho; esse foi num intervalo de atendimento na clínica num sábado de manhã, ainda erm 2003...

A facilidade da tinta, correndo fluida pelo papel macio, versus o labor de manter um grafite afiado, seu atrito abrindo sulcos na maciez do papel, deixando sua marca ao longo dos anos, naquelas mesas e escrivaninhas que há muito nos acompanham.

O caráter marcante na fluidez da tinta, o treino e atenção, o evitar o erro e o registrar a palavra em definitivo. Do outro lado, a rispidez do grafite que borra, uma escrita cheia de atritos, que nos leva a voltar atrás, apagar, corrigir e, por fim, esperar que o tempo clareie a sua presença, mantendo assim somente os seus rastros.

Os usos e desusos nas mãos das crianças e dos artistas, de todos aqueles que nos trazem a abertura para outros mundos, para aqueles mundos que são sempre o nosso próprio outro.

O RETORNO

Esse texto eu acho que escrevi num tempo livre que eu tive lá na FEBEM (trabalhando), provavelmente lá por março de 2003. O texto não tem nada a ver com isso, mas é interessante que eles (os textos) sempre me cobram que eu os escreva, quando eu estou ocioso no trabalho, seja no hospital, na clínica, onde quer que seja.

O fluxo incessante, orgasmático e caótico da existência coletiva em suas formas mais civilizadas, o sufocante momento quando parece não haver mais saída, alternativa ou cura para tudo o que bloqueia, interrompe, encerra e enterra a minha razão de ser.

O peso de saber que a caminhada é pesada, seca ensolarada e molhada tempestuosa, que o beijo da suave brisa me estimula a buscar aconchego no coração do vendaval.

A memória, a saudade e a lembrança, as Três Fúrias filhas da conservação do tempo no qual a natureza permanece sempre ela e não mais ela mesma. A trindade daquilo que já foi e já era, daquilo que nunca mais será como em outro dia; o retrato, o impacto e a pintura carregados com o forte cheiro do ontem, do hoje, de amanhã, poeira e orvalho, cheiro de passeio no parque e de cachorro latindo.

O retorno, sem menção honrosa, do soldado desconhecido, de calças vermelhas e fumaça na boca, sal na barba e éter no coração. O retrato em seu olhar, de coisas e do mar, o impacto da fumaça em sua morada, a pintura da bela mulher por quem um dia prometera a lua, o mar e a estrela cadente mais brilhante.

DIÁRIO DE GUERRA

Esse texto é um mistério; eu escrevi alguns desse estilo quando estagiava no Hospital das Clínicas, em 2001. Mas esse tem data de 2002 e eu lembro de ter escrito ainda no HC. Fica o mistério.

DIÁRIO DE GUERRA
6/2/02 - A situação está chegando num ponto em que não diferencio mais desejos e necessidades. Tudo parece um louco delírio, etéreo e fora de foco.

O pior momento parece ter passado, a sensação de estar preso nesse lugar é mais aterrorizante do que qualquer cena de violência brutal jamais presenciada. Aprendi a aceitar a brutalidade como reflexo de nossa condição animal, reflexo que só pode ser extravasado desse modo, ou de outros modos mais danosos, quase sempre levando a vícios ou à eterna insatisfação.

A realidade me esbofeteia até conseguir me tirar da realidade, me sufocando, puxando para todos os lados, levando o meu raciocínio ao limite da extinção. Mas o pior momento já passou, hoje consigo, como antes de estar aqui, transitar por entre momentos, fatos e lugares, de fato.

A claridade dá pistas para sair dessa mata fechada, os inimigos ainda estão em cima de mim. O desespero já não é meu vizinho, reconstruo o meu tempo, a saída está lá, mas não carregarei os inimigos nas costas. Inteligência, tenho que usar; violência, se precisar, o jogo ensina a perder e ganhar.

Quarenta e quatro minutos de jogo, fôlego baixo, mas reflexão em alta. É só o fim do primeiro tempo.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

BAILE DA SAUDADE

Minha linda,

quero que você saiba que desde que eu peguei a estrada para Ribeirão Preto, eu já sentia a sua falta. Reparei como me sinto diferente quando sou eu quem deixa a cidade, te deixando sabe-se lá por onde. Você fica faltando em mim, o seu cheiro falta na minha pele e essa falta aumenta muito na estrada, no aeroporto ou no lugar de destino, seja no interior do estado ou nas praias do nordeste.

Queria muito falar contigo de lá, principalmente no dia da festa, mas foi bem nesse momento que fiquei sem créditos no meu celular. Já notou como eu sempre perco de te dizer algo especial por falta de crédito? Li em algum lugar que cerca de 80% dos aparelhos celulares vendidos no país são pré-pagos. Por que então eu me sinto mal toda vez que busco essa aproximação e me é negado esse direito?

Eu fui registrando mil coisas que queria te contar, nem que fosse assim, por escrito e com mais calma, mas você bem sabe que a minha memória me prega peças o tempo todo, né? Tinha o nervosismo do noivo, o garçom que me privilegiava nas doses de uísque, as pessoas conhecidas do tempo da faculdade, a garota que xavecava 2 amigos ao mesmo tempo e tantas outras coisas que me faziam rir. E outras histórias, teve o pessoal do hotel, muitos chegando para a mesma festa, tinha o hotel em si que parecia um daqueles condomínios populares americanos em Las Vegas, ou em Miami, com 2 andares e uma longa extensão de dormitórios geminados.

E tinha ainda aquelas coisas mínimas que me faziam pensar em você o tempo todo. Como quando me vesti para a festa e me senti com ares de advogado, com aquela roupa que me incomoda, mas que eu tenho certeza que você aprovaria. Pensei nos seus olhos brilhando de animação, talvez depois você dirigiria olhares mais zelosos ao me ver entornando incontáveis doses de uísque ao longo da noite. E que não teria pena de mim quando eu contasse que perdi o óculos e algum dinheiro na festa, e então eu aceitaria que paguei o preço justo pelo tanto que me diverti.
Mas te escrevo mesmo, no final das contas, para que saiba que eu não te esqueço, que o seu sorriso sempre me traz de volta pra você (principalmente quando você sorri com os olhos) e que quando estamos juntos, não existe um dentro de mim ou um dentro de ti, o que existe somos nós no mundo, um "Eu e Tu" (muito cyber-sein?).

Beijos em você, minha menina. Não de despedida, pois querendo ou não, te levo comigo pelo país todo.

CARTA A UM NOVO AMIGO

Caro M.,
espero que tenha voltado bem de viagem. Espero que você e a sua esposa estejam melhor agora. Rapaz, me desculpe por ter esquecido o nome da sua cara metade mais uma vez. Temos nos visto muito pouco nos últimos tempos, não é? Eu nem sabia que você estava nessa fase da vida. Sabe, passei a sentir uma afinidade maior por você agora, pois até isso estamos compartilhando, descobrindo juntos. Ambos entramos nessa fase no último ano, na fase de viver a vida a dois. E ainda estamos quebrando a cabeça para nos afinarmos com as surpresas que isso nos
traz.

Sabe do que estou dizendo, não é? Tenho conversado com outros homens recém casados ou recém "juntados", como nós, e o que mais escuto é sobre as brigas constantes. Não ouvi ninguém se queixar de dinheiro, de problemas com o vizinho ou com a sogra... o problema universal para nós, recém ingressos nesse barco, é o excesso de discussão pelas razões mais banais.

Tentei te falar um pouco disso no casamento do nosso amigo (o próximo que vai descobrir em breve a diferença brutal entre namorar a vida toda ou viver junto por mais de um mês). Tentei, no meio da festa de casamento do nosso caro colega, te dizer que essa fase deve passar, deve melhorar, mas que vai exigir que você e a sua esposa possam se abrir sem se ofenderem. Olha só, você sabe que eu nem a conheço, não é? E só você pode me dizer o que viu, ou o que pareceu aquilo que te deixou furioso na hora. Mas será que agora faz mais sentido o que eu te disse? Que ela estava lá com você e por você? Que se você escolheu viver a vida a dois com ela, é difícil crer que você tenha se enganado daquele jeito que te pareceu?

Será que foi muito esquisito eu ter chorado no seu ombro quando era eu quem estava lá para consolar você? Tentei te dizer que esse é um momento das nossas vidas que tende a melhorar. Sempre ouvimos falar das tais dificuldades do casamento e tínhamos a pretensão de achar que sabíamos muito bem que dificuldades seriam essas. Acontece que não sabíamos de nada; e não haveriam dificuldades se elas já fossem todas previstas. Não fizemos um investimento seguro, meu amigo, mas investimos no que acreditamos e isso fez todo o sentido naquele momento. Será possível que em tão pouco tempo possamos ter certeza de qualquer desgraça?

Compreendes? Imagino que sim. Não tive a oportunidade de ter a mesma conversa com a sua esposa, mas o rosto dela dizia tudo. Dê um voto de confiança, estava na cara que ela te ama, que sofreu pelo mal estar provocado ali e que não faria nada que desrespeitasse o compromisso que vocês assumiram juntos. Quando te empurrei para dentro da van, fiquei preocupado que você deixasse ela voltar sozinha para o hotel e que a situação piorasse no dia seguinte. Não sei se você preferia deixar para falar com ela com a cabeça mais fria, no dia seguinte. A minha aflição não deixou que você escolhesse por si mesmo. Mas também não achei que você devesse tomar muitas decisões por vontade própria naquele momento. Se acertei ou se só te enrolei, não posso saber agora, mas fiquei satisfeito por ter te convencido a entrar na van e pelo menos, voltar junto com ela.

Por último, só para ficar registrado, quero que saiba que eu teria dito tudo aquilo mesmo se não estivesse com a cabeça cheia de uísque. Tenho certeza disso. Como já falei, são situações muito parecidas que estamos vivendo na mesma época e eu também me deixo dominar pela emoção, não raras vezes. Mas precisamos, eu com a minha companheira e você com a sua, descobrir formas de nos comunicarmos, mesmo que de forma desequilibrada e emotiva, mas ainda com carinho e entendimento.

Abraços do cara que está sempre por aí, cada vez mais torcendo por ti.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Trabalho dá trabalho

Entrevista de trabalho pelo telefone, para uma empresa internacional de tecnologia, com a entrevistadora direto dos EUA.

Tenho que falar da minha experiência de trabalho em equipes multidisciplinares, da minha experiência com jovens e adolescentes, nas áreas de saúde e educação, principalmente em educação. Da minha habilidade com ferramentas de avaliação (evaluation tools) e com a elaboração de relatórios (assessment reports).

Da minha bagagem intelectual, aproveitando pra destacar a minha pós-graduação em Escolarização e Diversidade, onde apresentei a monografia (presented the monography) “A construção da identidade dos adolescentes nas comunidades virtuais”. Além disso, o mestrado que estou cursando, com o projeto de pesquisa: “Análise sobre novas formas de socialização mediadas por jogos eletrônicos.”.

Sim, tudo isso deve ajudar. Ainda mais se ela abrir espaço para eu falar das minhas outras atividades pessoais, como os 2 blogs que mantenho (a empresa dela desenvolve isso também, boa!) e o meu gosto por street art, grafitti, graphic novels e afins. Pela descrição no site do ambiente de trabalho deles, se eles tiverem o interesse de me contratar, será como juntar a fome
com a vontade de comer. Se eles quiserem me contratar.

Aí entra o que não está no currículo, mostrar segurança e entusiasmo com essa oportunidade que está aí, aberta e circulando no mercado. Yes, I am skilled for this opportunity. I am excited and don´t know what else to say. Acabo já trabalhando com a hipótese de não rolar. Mas quero que role. Quem não ia querer o trabalho que eles me ofereceram? Bem, quem tiver outro melhor. Por isso fica parecendo que essa oportunidade é do meu tamanho certinho. Great expectations...

sábado, 19 de janeiro de 2008

Só coloquei o contador agora. Vai dar uma conta meio mentirosa, já que o blog já está sendo visitado. Pra não ser muito otimista, eu acrescentaria uns 10 acessos a mais.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

INSTRUÇÃO

O rapaz completa 18 anos e corre para a auto escola. A maioria dos seus amigos já tinha a carteira de habilitação, ele era o mais novo do grupo. Já estava na faculdade e se lembrou de que no colegial, quando alguém dizia que já podia dirigir, isso dava um status absurdo. Agora na faculdade, poder dirigir era o mínimo para dar conta da sua rotina de estudos, estágios, academia, baladas, namoro e viagens para o litoral norte.

Foi entrando logo na auto escola mais próxima da sua casa, um lugar que não inspirava muita confiança, mas pelo menos era barato. A cada aula lhe indicavam um novo instrutor, cada vez num carro diferente. Não achou ruim, pois queria mesmo dirigir a maior variedade de carros possível. Na segunda aula, uma moça jovem, morena e toda falante veio com um Corsa e ele deixou o carro morrer.

- Não liga não, acontece. É problema da embreagem, você tem que ir fundo.

Naquela aula ele aprendeu a ir fundo com aquela instrutora. Mas na aula seguinte, foi encaminhado para um tiozão na faixa dos 50, que levou-o até um Fiat Uno, estranhamente estacionado fora da auto escola. Mas o que chamou a sua atenção foi uma mulher no banco de trás, que acompanhou-os durante a aula toda. O instrutor ia dizendo laconicamente, "estaciona ali", "dá a volta, olha a placa de PARE". Mas as instruções eram as mínimas necessárias, já que ele estava muito mais ocupado com a discussão que levava em paralelo com a mulher no banco de trás.

- Eu não quero saber, eu fico confiando e você nunca vai ver a sua filha, não sabe do que ela tá precisando.

- Eu não te falei que ia antes do Natal? Não fui lá levar ela pra passear?

- Olha, eu tô dizendo que você tem que parar de falar tanta mentira, eu fico dependendo de você pra resolver certas situações e você some.

- Eu só sumi quando disse que precisava fazer aquele carreto...

E assim prosseguiu. O rapaz manobrando, dando seta, atento a tudo e ao mesmo tempo imaginando: "É muita cara de pau trazer a ex-mulher pra ficar lavando roupa suja aqui, né? E ela também nem se intimida, vai falando de tudo na minha frente, tá cagando e andando. Puts, ter ex-mulher já deve ser treta, ainda mais um cara desses despreparado pra tudo na vida".

Do auge dos seus 18 anos ele observava e analisava. Antes de entrarem na avenida Pacaembu, retornando para a auto escola, ela diz que vai descer. Nos poucos quarteirões de volta, o instrutor puxa conversa com ele.

- Você tem namorada, garoto? E você é fiel? Não tem outras por aí? É... escuta o que eu te digo então, nunca deixe a sua amante engravidar, tá ligado?

O rapaz percebeu então que a situação era bem diferente da que ele julgava, ainda mais tenebrosa (assim ele pensava). As últimas instruções daquele dia foram:

- Se você tiver uma amante, fica com ela enquanto vocês se divertirem juntos, não fica arrumando problema pra cabeça. Ah, e não conta lá na auto escola o que aconteceu, beleza?

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Horizonte

O seu corpo tem uma beleza que não se encontra nas academias de ginástica, nem nas capas de revista. O seu pai não exitaria em dizer sem pudores que ela não é nenhum padrão de beleza.

Mas ela encanta pela pele morena, pela carne macia e o cheiro marcante. Quando está alegre, o brilho que irradia nasce no seu olhar, mas se espalha por todo o seu corpo.

O corpo do seu amante é branco como a lua em certos períodos e todo pontuado por sinais ou pintas. Ele tem ombros largos e braços que cobrem a sua amada por inteiro. As marcas que pontuam o seu corpo formam perfeitas constelações.

Quando ela se deita, o seu corpo é como o mar, fluido e suave, mas em atividade intensa. Ela ofega e chama para si o corpo dele, que a envolve toda, como o céu estrelado. O céu iluminado por uma lua pálida, essa clareza percorrendo cada ondulação do mar abaixo de si.

Para quem visse a distância, não seria possível distinguir no horizonte da noite os limites entre céu e mar. Somente eles se reconhecem ao se misturarem, ele explora cada ondulação que vibra abaixo enquanto ela é acariciada pelo véu estrelado que nada deixa de fora.

De acordo com os ciclos da lua, ela se exalta ou se retrai, cobrando do véu estrelado acima que se manifeste mais, que dê provas da sua devoção e da sua cumplicidade. As primeiras oscilações da maré levaram a tempestades repentinas e o clima tempestuoso fez com que o céu pesasse desconfortável sobre o intenso movimento da maré.

Mas conforme as estações se repetem e as turbulências e retraimentos vão e vêm, os elementos encontram a sua harmonia no desejo de cada encontro.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

No metrô

Ele pega o metrô logo pela manhã e segue para o trabalho. Geralmente com um livro na mão, ou com fones nos ouvidos, ele sempre acaba se distraindo e com a mente mais solta, é como se um oráculo lhe revelasse algumas grandes verdades da sua vida, tal qual num mito grego.

Quando se apaixonou pela última vez, continuou pegando o metrô e lendo seus livros, ou escutando as suas músicas, mas sem aviso prévio passou a ter ereções enquanto viajava sentado no vagão do metrô. Nem precisava pensar na pessoa amada, não precisava evocar nenhuma memória; a sensação estava registrada em cada nervo do seu corpo.

Depois disso veio a fase analítica, na qual ele pensava o tempo todo na pessoa amada e isso o remetia a questões que discutira, anos antes, com sua analista. Questões edipianas, narcísicas, carências existenciais, desejos ambíguos e o resto do cardápio todo. Tinha esses insights, no
metrô, que sempre o pegavam de surpresa; chegava em casa e logo telefonava para a sua musa inspiradora, contando sempre não mais do que a metade das revelações do dia. Sempre achava que tinha um lado que deveria permanecer não dito. (Ela me suportaria por inteiro? Já não sou
demais assim como estou?)

Por fim, entrou na fase intuitiva, na qual ambos já se conheciam um tanto e se afinavam, um sempre se ocupando das questões do outro. Ele percebia que nunca estavam em posição de igualdade naquela relação. Quanto menos ela exigia na relação, mais ele temia perdê-la. E quando era ele que se dava por satisfeito, ela logo se punha a sofrer pela incerteza do amanhã. Não viviam juntos mas, naquela semana, se viam quase que diariamente. Num dia desses ela mandou um recado pelo celular só para mostrar que tinha acordado cedo e sentia saudades. Ele ligou de volta e conversaram até que ele teve que correr para o metrô novamente. Quase no fim do trajeto, o oráculo lhe esbofeteou novamente. "Puts, toda vez que ela fica assim tão carinhosa, tão apaixonada, é o princípio de uma crise. Como ela ficará depois disso?". No fim do dia, ele foi jantar na casa dela e a profecia se fez como previsto. Ela sofria sempre a inconstância daquela relação, apesar de todo o amor, carinho, confiança e cumplicidade que dividiam. E naquela noite eles souberam que não havia mais relação, pois os sentimentos que tinham um pelo outro os desestabilizava sempre mais. Ele foi embora no meio da noite pensando que não deveria andar tanto de metrô, a não ser quando estivesse excessivamente bêbado.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

De virada

Eles se conheceram numa festa, perto da época do aniversário dela. Ele foi no aniversário e lá estava ela com outro homem. Mas ambos sabiam que viveriam alguma coisa muito boa juntos e assim aconteceu. De lá até o fim do ano, se foram alguns meses de alegrias, carinhos, êxtases e gozos, junto com toda a dor e a fúria que uma paixão fulminante necessariamente traz.

Modernos que eram (ou queriam ser), mantiveram uma relação aberta, com tempo de sobra para outros parceiros, incluindo aí o ex-namorado dela. Quando o natal já era assunto entre eles, começaram a planejar os dias que passariam juntos até que cada um viajasse para um canto diferente. Ele iria de ônibus para o sul do país e ela, de carro, para uma praia no litoral norte de São Paulo. Até o natal, viveram uma paixão intensa, uma entrega que mataria qualquer um de inveja. Gozo e sofrimento misturados, ela perguntando como poderiam se fundir num só e ele já sentindo o aperto no peito pela viagem que os separaria.

Certo dia, ela falou: "Nego, fica contente vai, isso vai fazer bem pra nós. Eu vou voltar morrendo de saudades, te quero demais". Passado o natal, no dia da despedida eles estavam na rodoviária e ela tentava animá-lo: "Nego, você tá indo pra praia! Vai curtir o ano novo num lugar lindo!". Ele nada respondeu, virou o rosto enquanto andavam, engolindo as lágrimas que já queriam subir para os olhos. Sabiam que ficariam incomunicáveis por uma semana ou mais.

No dia 1o de janeiro, ele conseguiu ligar de um telefone público perto da praia e por 7 vezes tentou falar com ela. Mas ninguém atendia. No dia seguinte ele já estava de volta a São Paulo e ela ligou no seu celular. "Nego, tudo bem? Eu não estava em casa quando você me ligou ontem. Como você está? Estou morrendo de saudades de ti, meu querido!". Ele já engolia as lágrimas mais uma vez, dizendo que não estava aguentando mais a distância, que não podia mais ficar sem ela e que queria vê-la assim que ela voltasse, no final do próximo dia. Ela garantiu que ligaria para ele quando chegasse e ele ficou esperando.

Dois dias depois, ainda sem contato, ele vasculhou e-mails, orkut, mensagens no celular e não havia nem sinal de vida dela. Como sabia que ela tinha chegado na noite anterior, ligou do trabalho para a casa dela.

- Pretinha?

- Oi querido, posso te ligar em 1 minuto?

- Claro. Te acordei?

- Hum... mais ou menos. Já te ligo.

Uma hora mais tarde ele já estava nervoso, sentindo que algo não ia bem desde a virada do ano. Ele liga mais uma vez.

- Sou eu, Pretinha!

- Ai Nego, posso te ligar em 1 minuto?

- NÃO, NÃO PODE! ESSE 1 MINUTO JÁ DUROU MAIS DE 1 HORA!

- Puts, sério? Que horas são?

- Você ainda está dormindo?

- Hum... na verdade não.

Conversaram então, mas ela não quis prolongar o papo pelo telefone, queria vê-lo pessoalmente. Disse que ficara acordada até as 6 da manhã, apesar de não ter entrado na internet. Conhecendo a sua Pretinha o suficiente, ele estranhou e ficou constrangido em perguntar com quem ela poderia estar, pois não era segredo que a relação de ambos não era de exclusividade.

- Hoje eu não posso te ver - disse ele -, tenho reunião até de noite. Posso passar aí amanhã e te acordar?

- Pode sim, querido. Te espero amanhã.

No dia seguinte ele, todo apaixonado, foi cedo para a casa dela, ansioso pelo reencontro mais que tardio; queria ter nas suas mãos aquele corpo bronzeado e queria dizer a ela o quanto estava apaixonado. Assim que chegou, se beijaram, contaram de suas viagens um para o outro, tudo com muita felicidade e cumplicidade. Nesse ritmo, logo estavam nus e ele perguntou: "Cadê aquelas nossas camisinhas?". Ela constrangida, acabou abrindo o jogo:

- Quando eu voltei da praia, fui direto para a casa do Rick (o ex-namorado).

- Eu já imaginava minha Preta, eu sei que quando te liguei do trabalho você estava com ele aqui, sei que vocês passaram o dia juntos.

- Nego, eu dormi com ele já na noite em que cheguei.

- Você disse que ia me ligar...

- Sim, mas ele acabou me ligando também, disse que estava morrendo de saudades e que queria tanto me ver...

- Ah tá. E eu!? Eu não te disse isso tudo também? Você não disse que estava louca pra me ver? O que quer dizer isso agora?

(Semanas antes de viajarem ele imaginou isso tudo acontecendo.)

- Qualé Nego!? Se você tivesse me ligado, eu teria te encontrado sem nem piscar, mas quem me ligou foi ele!

- Ah, e agora a Dona FLor vai falar comigo desse jeito toda grossa?

- Desculpa. Eu não quis...

- Eu me sinto UM IDIOTA vindo aqui todo alegre atrás de você. E você acabou de dormir com ele, de novo né?

- Foi sim... eu estou dormindo com o Rick desde que voltei.

- Vocês voltaram, né? Por que não me diz que vocês estão juntos?

- Porque não estamos. Ele quer ter mais autonomia. Eu estava numa fase confusa quando terminamos. Ele fica com outras pessoa também, assim como nós.

- Eu não vi um motivo que tenha partido de você. Parece que não foi você quem quis esse término. Parece que eu estou forçando a barra no meio de vocês dois.

- Nego, nunca mais diga isso! Você não sabe como eu fiquei feliz quando você disse que vinha. Como eu fico feliz de você estar aqui comigo!

- Eu não sei mesmo. Você não me telefonou uma única vez e eu quase implorei pra você não desligar na minha cara ontem. Nem um e-mail, nem nada!

Aos poucos eles voltaram a se entender, ele percebia que criara muitas expectativas em cima de uma relação que nunca comportara esse tipo de entrega e ela assumia que não sabia bem o que estava fazendo, que viajara para se distanciar dos seus dois casos mais fixos e na volta já se envolvera numa situação mais do que estranha por causa deles.

No fim daquele dia ele pediu que ela o levasse de volta para casa. Sabendo que não passariam a noite juntos, ela liga para o Rick. Deixa o Nego na porta de casa dizendo "Você é o meu amorzinho, eu quero te ver de novo o quanto antes". Na sequência, passa na casa do ex-namorado para passar mais uma noite junto com ele.