domingo, 23 de novembro de 2008

ZIGUE-ZAGUE (OU DE SOSLAIO)

Ele estudou em uma das mais renomadas instituições para o curso que escolhera, Psicologia. Desde a época dos estágios curriculares, chamava a atenção por demonstrar uma escuta analítica que, não raras vezes, levava os próprios professores a se sentirem embaraçados. Certamente, o retorno que recebia de alguns professores era algo como "você aprenderá com o tempo, a analisar de outra forma (como eu); aquilo-que-você-vê-e-eu-não-vejo não será tratado na supervisão".

Recém formado, não custou a decidir bater asas por outros locais de produção de saber, outras instituições, rompendo qualquer vínculo com a instituição que o formara. Em poucos anos se deu conta do erro que havia cometido, ou pelo menos, um erro estratégico do ponto de vista de quem quer crescer rapidamente e alcançar certas facilidades. Andarilhou atuando como profissional de saúde, de educação, desenvolveu projetos sociais e empreendimentos na área de comunicação. Em menos de cinco anos encheu-se de tudo e com o rabo entre as pernas, foi procurar alguns antigos professores, em suas associações de formação continuada. Nesses locais, o diploma do curso superior, aquele mesmo que nunca contribuiu para a inserção do profissional no mercado de trabalho, é desconsiderado e em seu lugar, o profissional passa os anos correndo atrás de certificações semestrais que o elevem ao status de especialista em pagar cursos.

Ouviu de uma professora que não seria aceito naquela associação, pois a sua carreira até então mostrava que ele mantivera pouco envolvimento com os valores mais puros preservados naquele local. Foi dito que ele parecia andar em zigue-zague, sem firmar-se numa prática que lhe garantisse o ingresso a um dos templos de perpetuação dos saberes e práticas psi, onde realmente se poderia alcançar o reconhecimento (status) tão cobiçado.

Frustrou-se por ouvir aquilo e deu-se o direito de discordar, demonstrando que as suas práticas eram múltiplas e não lineares, mas que levavam todas à construção de um saber que merecia respeito. Saiu de lá e no semestre seguinte participou do processo de seleção para o programa de mestrado de uma renomada universidade pública na sua cidade. Foi na preparação para a vida acadêmica que conheceu o professor que mudaria a sua perspectiva sobre o ziguezaguear. Já na primeira aula do curso, o professor leu a conferência preparada para uma palestra, na qual apresentava um homem catatônico, o corpo todo enrijecido, a cabeça sempre apontando para o céu. Ele estava internado em um hospital psiquiátrico e pelo seu diagnóstico, não sairia de lá a menos que algo muito inusitado acontecesse. Um cão sem dono sempre roçava as suas pernas e o lambia meio de soslaio. O homem mantinha-se rígido dia após dia, olhando para nada além das nuvens no céu. Rigidez apontando para fluidez, catatonia endereçada à fruição. O cachorro parecia nem compor o cenário. Um dia o cachorro foi atropelado na rua e aquele mesmo homem
andou passo a passo em direção à rua, cruzando os muros e portões, pegou o cão em suas mãos e fez os curativos necessários, até que o cão saísse andando por aí. O cão não se prendeu à bondade do homem que ele vivia rondando e lambendo; ao invés disso, saiu andando em zigue-zague, conforme podia, sem se preocupar com o que viria adiante, ou com o que lhe ocorrera no passado.

Ao final da aula, ele contou sobre sua trajetória profissional para o professor, contou de seus descontentamentos e de como não conseguia dialogar com as convicções de muitos de seus pares. O professor fez a seguinte observação: "Você está andando em zigue-zague? Seria legal se estivesse mesmo. Você entende? Mas você acha que está mesmo andando em zigue-zague?" Pensando com calma, ele percebia que sim, mas só em parte. Não andava se escorando nos outros ao seu lado, andava meramente desinteressado pelo que deixava atrás de si e pouco confiante no que lhe surgia pela frente. O cão sem dono que ele era não lambia pernas assim tão a esmo, não inventava ainda novas formas de caminhar, ainda mijava sempre no canto do muro.

Naquele dia, voltou pra casa pensando em seu filho recém nascido. Acomodou um sorriso discreto no canto da boca, quando percebeu que a preservação de sua identidade já não era mais interessante. Seu filho o ensinava a ocupar outros lugares; passava a sentir cada vez mais que não era ele o centro do jogo, nem os outros ao seu redor, nem as suas ocupações pessoais. Seu filho, um pequeno filhote de raças misturadas, ensinava que a vida era algo sem rosto, sem status, sem prazo para acontecer. Seu filhote o ensinava a viver isso, escorando em quem estiver ao lado (não disperdiçando a chance para algumas lambidas). Andar em zigue-zague poderia continuar sendo visto com certas reservas pela Grande Associação na qual tantos ainda vão para "se formar". Mas ele já não precisava mais de algo que a Psicologia, de fato, não lhe daria; ele estava pronto para pensar a vida sem as barreiras do corpo, dos fluxos de entrada e de saída, dos acontecimentos de "natureza interior" e de "natureza exterior", dos fenômenos fisiológicos em oposição aos mentais/afetivos. A vida só passa por isso tudo de soslaio... enquanto não se deixar capturar.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Terminator

I´ll be back... SOON!

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Na academia de judô, ele não se destacava como atleta, mas tinha um papo diferenciado. Eram todos bons amigos, algo como uma irmandade de lutadores, mais qeu isso. Crianças, jovens e adultos conviviam nos mesmos espaços e cumpriam as mesmas rotinas. Mas era rara a presença de garotas da idade dele, ou mais velhas.

Ele estava na faculdade, falava de filosofia e psicologia, enquanto a maioria dos companheiros falava sobre engenharia e finanças. Por mais de uma vez, mulheres se aproximavam para perguntar sobre Jung, a grandeza do universo, o sentido para além dos corpos celestes...

A vida passa rápido e ele, um lutador que conquistou a faixa preta, abandona a rotina de treinos e torneios para se dedicar à vida acadêmica. Rapidamente vai perdendo contato com os antigos "irmãos" e quando reencontrava alguém era por mero acaso, em festas improváveis. Numa dessas, reencontrou uma colega de treinos, com a qual nunca tivera muito contato. Estavam em um centro cultural mambembe, onde uma banda tocava forró e ska ao mesmo tempo.

Eles conversaram e os seus olhos começaram a brilhar. Ela esperava a ligação de outro homem, com quem mantinha alguma relação. Em certo momento da noite, ela já sabia onde encontraria o seu "ficante", mas foi estendendo a noite ao lado do antigo colega. Quando os músicos da banda subiram para fazer uma jam mais descontraída no andar de cima do local, o guitarrista, um antigo caso seu, logo a convidou para subir junto com eles. Ela se enfiou entre eles e virando o rosto, disse:

Vou subir com eles, vamos?

Sim, claro que ele foi. E lá em cima, ela que antes olhava para o guitarrista, logo foi se acomodando ao lado do antigo-novo-quase-amigo. Por mero acaso, no andar de cima, onde estavam agora, tinha uma sala com o piso todo de tatames de palha. Tiraram os tênis e ficaram por lá, sentados no chão, continuaram conversando. Os seus pés começam a se procurar então. O movimento partiu dele. Totalmente a vontade, bêbado ao lado daquele mulherão cobiçado por todos, começou a conquistá-la pelos pés. Os seus acariciavam os dela e assim ela foi se acomodando ao corpo dele. Ambos tinham porte de lutadores, altos e imponentes.

Quando os seus pés já estavam bastante enamorados, ele rolou por cima dela e se beijaram. Esse seria só o primeiro capítulo da história de amor entre os seus pés. Sempre que brigavam, eram os pés dele que buscavam se conciliar com os dela (e só por conseqüência, com ela toda). Massagens nos pés ganharam um significado todo particular. E não por acaso, quando passaram por uma crise na relação, ela voltou mancando com fortes dores no pé. Levou um tempo até que ela deixasse de sofrer a dor do ligamento rompido que no caso deles, era a dor de um coração partido.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Funky Buda no Haja Saco again

É um textículo que já tá aqui, mas vou dar as caras mais uma vez no Haja Saco, nesse sábado, dia 12. O blog é sempre bom e os colaboradores aos sábados trazem sempre boas surpresas.

sábado, 5 de abril de 2008

CHEIROS

Levanto no meio da noite fria de outono, apesar de já ser primavera. Vou no banheiro e consigo sentir o cheiro forte do meu mijo. Reconheci o café que tinha tomado apenas algumas horas antes. Associei pela primeira vez esse aroma a um outro do meu passado. Descobri só agora que era o cheiro do meu avô. Cheiro de café e de algo mais. Remédios talvez. Cheiro de pijama também e de loção pós barba, sempre.

Patético pensar nisso com os pés gelados, a cabeça baixa e os olhos na privada. Mas a situação me jogou para fora de lá, para essa intrigante cena do cheiro do meu avô. Voltei para o quarto pensando no quanto sou viciado em café e no cheiro que terei algum dia.

quarta-feira, 12 de março de 2008

CAFÉ E BOBAGENS

Quando eu estudava na PUC, na segunda metade da década de 90, tinha uma padaria lá na esquina com a avenida Cardoso de Almeida chamada Perfil. E tinha uma outra na esquina de cima, atravessando a avenida, a Flor das Perdizes. Bem, já faz tempo que a Perfil fechou e a concorrente passou a reinar absoluta na região. Investiu em reforma, subiu o nível dos produtos e do atendimento.

Passou a ser o point da região para um cafezinho rápido, aquele suco de laranja refrescante, ou a torta de morango a caminho do almoço na casa da tia.

No mês passado eu comecei a atender um cliente aos sábados de manhã, bem naquele quarteirão. Viciado que sou num café espresso forte e puro, acabo sempre parando lá antes de começar a trabalhar. No espaço da frente, que durante a semana serve de estacionamento, aos sábados predominam as mesinhas onde todos preferem comer, sentindo a brisa da manhã e a fumaça dos ônibus da avenida. O público é o seguinte: famílias jovens com filhos pequenos, casais jovens recém-casados ou namorados e coroas solitários conhecidos na vizinhança, principalmente.

Tudo de razoável bom gosto a não ser por um detalhe. No canto dessa área externa, sentado num banquinho, um tecladista anima a manhã com os clássicos da música popular. Na primeira semana ainda dei sorte, o teclado estava lá armado, mas não vi nem sinal do tecladista. Na semana seguinte fui obrigado a amargar o café puro com o genérico do cãozinho dos teclados.

Achei que o trauma não me permitiria mais tomar café na Flor das Predizes. Por mero acaso (entre os psicólogos, a fé em Deus varia de acordo com o guru que você venera), na terceira semana o cliente me liga desmarcando o atendimento. Por sincronismos que só Jung explica, não sofri uma overdose de café com bobagem, ops, café com tecladinho.

Mais uma semana se passa e no outro sábado estou eu lá, muito mais confiante e valente, querendo entortar o tecladista, pegando pelo chifre. Qual não foi a minha surpresa quando cheguei na padaria e não vi nem rastro de nenhum instrumento musical. Minhas preces foram
atendidas, logo pensei. E com a tranquilidade que pairava no ambiente, fui reparando nas pessoas que, como eu, comem sozinhas no balcão.

À minha esquerda uma cabelereira japonesa comia um X-Bacon cheio de ketchup. Eram 10:30 da manhã. Ela parecia desanimada. Fiquei imaginando se também passava ali todos os sábados. Logo concluí que para ela a música ruim devia ajudar a empurrar o bacon matinal. E depois de notar que naquele dia as mesas do lado de fora estavam mais vazias, por generalização pura e simples concluí que a música ruim também deve amenizar o cheiro dos ônibus que passam na avenida.

Toda a poesia da Flor vem das melodias pré-programadas.

sábado, 8 de março de 2008

Citação

Do punk ao pixel, por ANDRÉ FORASTIERI
"O realismo é insuficiente para representar a realidade. (...) Só outsiders e diletantes abraçaram a novidade. Hoje é óbvio que somente monstros, canibais e distorções podem descrever o horror de 'Guernica'. E as obras destes radicais valem milhões.
(...)
Hoje é impensável imaginar a cena cultural global sem a agressão, o multiculturalismo, a miscigenação, a liberdade estética e comportamental que nasceram do punk e da new wave. Vivemos no mundo que o punk fundou..."

VODKA (remix)

O ato de mutilar uma obra de arte é tradicionalmente visto como um tipo de censura, ou de desrespeito. Mas na pós-modernidade sem lastro histórico, essa prática também vem sendo chamada de releitura.

O texto abaixo foi "editado" por mim, sem consulta à autora. Quem quiser conferir o original, tá publicado na revista CULT nº111, do mês de março de 2007.

VODKA Por Vanessa Maranha

Quanto a mim, continuo. Pouquíssimo constante e, ser for por aí, pelas retas de uma constância inexistente, então não, não continuo. (...)

Secreto? Não, em nada sou secreto. Aliás, ninguém o é. Tudo está posto e transparecido por sinais. Vê quem souber codificá-los. Mas continuo. Acho que um pouco mais intenso, acho que sem pressa. (...)

Ok. Continuo mirando o abismo, um flerte em si, ora avançando, mais cauteloso, um bocado medroso, procurando antes terra firme para onde eu possa voltar vivo e seguro. É incrível como corpo e coração vão sendo sentidos de um modo diferente na ligeireza aparentemente inerte do tempo. Você vê que aos poucos fui me tornando pesadão, macilento, quase escatológico, cada vez mais bicho. Umas refinações de contraponto, mas bicho. Agora selvagem. Não douro a pílula. (...)

(...)

Continuo em movimento. De vez em quando pauso, noutras saio feito doido por aí procurando, querendo, desejando. As coisas se repetem demais exaustivamente, não dá para ficar igual no vaivém dessas ondas. Não quero mesmo. Há muito descobri a falência na constância. Constante, só o infinito, que é dinâmico. Continuo aqui, ali, em lugar nenhum.

O que eu trago e ainda guardo em mim daquela época? Vejamos. Nem o sorriso? Ah, sim. A vontade do novo, pode ser? Não? Lealdade? Pensando bem, não sei descrever o tipo de lealdade que mantemos depois de certa idade. (...)

(...) Gosto muito dessa fluidez acetinada, resistente ao congelamento, essa coisa transparente algo oleosa da vodka. Gosto sim. Sou assim? Se deu certo o meu projeto? De vida? Como eu disse, continuo.

Vanessa Maranha é psicóloga e jornalista.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Filosofismos do cotidiano

BACHELARD ENCONTRA SABOTAGE

Conseguiria o filósofo fenomenólogo Bachelard resgatar o acolhimento originário da figura da casa como primeira morada do ser, se estivesse esse filósofo habituado à vida cotidiana da favela?

Poderiam os corredores e escadas da casa ser comparados às 'biqueiras' e vielas? Na favela ninguém vive num barraco, vive-se na comunidade. O barraco não pode ser lido como 'casa', talvez apenas como aposento, talvez apenas como porão. A casa/comunidade é um local de acolhimento-no-mundo, intimidade pública. E o barraco/porão não responde à necessidade de acolhimento do ser, pois na escuridão a polícia vive chutando a sua porta.
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Já escrevi sobre o provável choque de Heidegger perante a internet. E depois li no caderno Mais! Da Folha, alguns trechos de ensaios do Timothy Leary, o guru do LSD nos anos 60 que caiu no "espaço ciberal" nos anos 80 e 90. O computador é o novo LSD que permite uma reconfiguração/reordenação da experiência vivida e ainda abre canais realmente originais para a expressão artística e para o exercício de novas imagens poéticas. E o que eu não li, mas bem que deve ter passado pela cabeça dele, é que tanto o LSD quanto o computador podem "dar pau" e te jogar numa puta bad trip.

domingo, 2 de março de 2008

Confere lá

O Haja Saco publicou um texto meu ontem, 1o de março. O texto não é inédito, mas a publicação lá é.

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

PJ Harvey

Não sou de fazer crítica cultural, a não ser em trabalhos acadêmicos, mas essa eu fiz em maio de 2006 e gosto tanto da PJ Harvey que decidi republicar.

Show da Katia B ontem no Grazie a Dio.

Eu conheço PJ Harvey há mile anos. Já escrevi no outro blog sobre o quanto ela transmite a sensação londrina de metrópole chuvosa.

Naquele carnaval no Rio, eu mostrei pra minha namorada, tinha um CD da PJ que eu conheço melhor, na casa de uma amiga nossa (que na época era produtora da Katia B). E ontem a noite nós vimos a Katia B cantar PJ Harvey em versão samba. Outro clima, não lembrava em nada aquele humor chuvoso inglês típico. Muito bom. E no mesmo dia, pura coincidência (exceto se você for junguiano), o Álvaro Pereira Jr. escreveu na coluna dele na Folha: "logo após o 11 de Setembro: Entre a demência terrorista e a estreiteza americana, um show (...) fez lembrar que a arte ainda existe: PJ Harvey, a deusa britânica de nossas incertezas urbanas, passou por aqui".

(E no mesmo dia ele acertou outra vez, sobre o Belle and Sebastian: "Um mundo onde o cordeirinho e o leãozinho são amiguinhos. Onde todos dançam alegres em fofura comunal. Onde não existe guerra, só o amor, o amor. Belle and Sebastian, a banda escocesa, (...), vive em um lugar assim". Ou seja, música pra quem vive alegre no Mc Donalds.)

Filosofia alemã e comportamento americano

Publicado em novembro de 2003, é bem conveniente nessa época de eleições para a presidência do Império.

O que teria Heidegger a dizer do mundo de hoje? Se o "mundo da técnica" e da "cibernética" já o desanimavam tanto, o que ele pensaria da internet, computação gráfica, Playstaion2, etc e tal? Num primeiro momento, é fácil pensar que ele acharia tudo um imenso lixo que nos aprisiona no mais decadente modo de ser no mundo.

Mas eu não acredito que ele se limitaria a dizer isso. Na última quarta feira o Jorge Forbes (psicanalista ...) disse numa palestra que a palavra, enquanto forma de linguagem, não é mais suficiente para nomear e significar a nossa experiência de mundo. Enquanto psicanalista, é de se admirar um cara que assume a necessidade de um novo modo de compreensão, que ainda não está dado. Nossas teorias patologizantes são pouco eficazes. Mas Heidegger nunca se prendeu a teoria NENHUMA, sempre buscou o essencial ou transcendente do ser-no-mundo dado na dimensão do tempo.

E nesse momento, quem somos nós? Acho que somos aqueles que sabemos dizer muito bem até, quem sou EU, e só. Monólogos que se entrecruzam, buscando um sentido maior que nos oriente. É incrível a capacidade dos americanos nesse sentido, porque o presidente deles já definiu a linha de raciocínio estúpido que o gado deve seguir para alcançar o eldorado do Estado Absolutista Supremo e, dessa forma, para alcançar a segurança e confiança supremas numa razão incontestável. Todo americano deve saber dizer quem sou EU. E nada mais.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

DUAS DO CENTRO

Recuerdos do outro blog.
20 de novembro de 2003

Praça da República, hoje, 12:30. A Prefeitura organiza os eventos comemorativos do Dia da Consciência Negra. No palco, os técnicos de som testam o equipamento ao som de Marcelo D2 cantando: "Em busca da batida perfeita". Ao mesmo tempo alguns policiais correm atrás de 1 mendigo que estava notoriamente chapado e reaparecem todos juntos (mendigo chapado e policiais) em frente ao prédio da Secretaria da Educação, no quarteirão da praça. O tal mendigo estirado no chão, morto ou desacordado? Chapado ou já baleado? Niunguém sabe dizer... todos olham. Enquanto isso, a 5 metros do palco, 1 outro miserável puxa a sua carroça equipada c/ caixas de som e todos assistem à polícia tentando erguer o corpo do mendigo ao som de "Get up, stand up, don´t give up the fight". Essa foi foda de ver, e enquanto eu olhava p/ os policiais, vinha o som do palco, "A Procura da batida perfeita". Tragicamente poético.
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Acho que nesse post antigo, pela primeira vez eu falo de como a chuva me deixa mal humorado. E depois desse post, não parei mais de falar nisso, rs.

9/10/03

Dia de nuvens pesadas. Pessoas correndo nas ruas no fim de tarde. O céu parecia estar desabando antes das cinco da tarde. As pessoas pareciam nervosas, em pânico, fugindo de algo que as perseguia.

Desaba a chuva e eu, que não corri quenem um desesperado, fui atingido por várias pedras de granizo na esquina da Av. Ipiranga com a São Luis. Pela primeira vez em muito tempo não estressei com a chuva. Odeio essa água que faz a cidade parar. Se cai uma garoazinha merreca, a porra da cidade pára. Sempre pára.

Mas dessa vez quem parou fui eu. Parei numa esquina coberta e fiquei olhando para aqueles prédios no melhor pedaço do Centro revitalizado, pensei naqueles filmes do Wood Allen, aquela Nova York elegante, popular, mas classuda. Vi a chuva formando um véu sobre os prédios e na hora, sem saber o por quê, lembrei dos quadrinhos do Will Eisner. Depois, em casa, lembrei da capa de uma Graphic Novel dele, com um cara na chuva, ao lado de (ou talvez se dirigindo para) um desses edifícios bem tradicionais da Big Apple. O que me fez rir foi lembrar que o título da Graphic Novel é "No coração da tempestade".

Eu disse que dessa vez não estressei com a chuva. Não na hora. Mas depois eu não consegui mais me concentrar no resto do dia. Lia sem "escutar" o que lia, falava num tom nervoso com os meus amigos. Em casa, liguei o som para ouvir o Mano Brown. Liguei o computador mais tarde com isso na cabeça: "Mente tempestuosa".

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

MEU PRIMEIRO MICRO CONTO

Publicado em 2003, sob encomenda para a revista PSYU, que era meio que minha mesmo, rs.

Todas as noites ele devorava o seu jantar, arrastava a cadeira dando um forte empurrão para trás e podia-se ouvir a palavra "Liceensa!" ecoando pelo corredor que levava ao seu quarto. Como estudava de tarde, havia tempo suficiente para fazer suas lições no dia seguinte.

A noite era o único momento quando podia entregar-se à sua grande paixão: as estrelas. Tinha já quatorze anos completos e seus pais nunca repararam no brilho em seus olhos mirando alto no céu; o mesmo brilho daquele bebê recém nascido, a contemplar os móbiles coloridos que se moviam vagarosamente acima do berço. Todo fim de tarde ele voltava da escola andando - cinco ou seis quadras que lhe rendiam bons diálogos - acompanhando a jovem Diana até o ponto de ônibus, de onde ela só chegaria em casa meia hora depois.

Andavam sob o pôr do sol e certa vez, ela foi puxada pelas pontas dos dedos. "Você vê aquela luz lá onde já escureceu?" Ela sempre se interessava pelos devaneios daquele garoto e começava a perceber que gostava de passar aquele tempo ao seu lado. E como acontecia todos os dias, o anoitecer conduziu cada um para a sua casa. Mas naquela noite algo mudou; Diana ouvia música em seu quarto cheio de pôsteres nas paredes e sua mão aproximava-se do telefone.

Ele já jantara e caminhava para o quarto quando ouviu o telefone tocar. Sua mãe vem bater na porta para avisar que uma menina quer falar com ele. Mal sabia localizar o telefone no seu quarto, nunca atendia, nunca recebera uma ligação. "Ah... hum... alô?" Ele ouve a voz de Diana e escuta tudo o que ela diz, mas não entende porque aquela conversa não poderia ficar para o dia seguinte, quando se encontrassem depois da aula. Naquela noite ele foi dormir sem olhar para as estrelas.

Em seus sonhos, um céu negro como nunca se vira, coberto por um manto de estrelas que brilhavam com tamanha intensidade, que pareciam estar ao alcance dos seus dedos. Era o mesmo sonho todas as noites. Sempre via-se de pé em cima do telhado a admirar aquela luz branca-azulada. Mas naquela noite algo mudou; quando se deu conta, era Diana quem observava tudo de cima do telhado. Seu lugar já não era mais ao lado dela, já não conversavam mais. Encontrava-se agora sentado sobre o parapeito da janela do quarto, de modo que podia vê-la radiante na beira do telhado. Quando acordou, percebeu que já estava sentado na sua carteira, assistindo a última aula do dia.

Ia andando com o caderno embaixo do braço e olhando para o céu, mas nesse dia ele viu o céu nublado e nenhuma estrela se destacava. Diana encontrou-o e enquanto andavam ela percebeu que ele não olhava mais para cima.

"Dormiu bem essa noite?"

"Como? Quer dizer, não sei. Foi uma noite estranha."

"E isso é bom?"

"Como?"

"Teve bons sonhos?"

"Sonhos estranhos. Acho que bons. Parece que sim."

Ela ainda estranhava o silêncio dele, começava a pensar que não devia ter telefonado, que agora ele a trataria como fazia com todas as pessoas, com total indiferença. Também não queria incomodá-lo com um interrogatório, mas não sabia mais o que pensar. Foi apertando o passo, como se quisesse que aquele dia terminasse logo. Foi quando ouviu:

"O que você estava ouvindo ontem?"

"Quando?"

"Ontem, quando me ligou. O que estava escutando?"

"Ah, um disco da Cassia Eller, conhece?"

Ele fez que sim com a cabeça, como quem já tivesse algo mais em mente. Naquela noite, depois de jantar, andou calmamente até o quarto e ligou o rádio. Passou o resto da noite escutando e olhando para o telhado. Pensava se Diana também estaria escutando as mesmas músicas, sem saber que ela não escutava nada, apenas olhava para o alto, parada em frente da janela.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

TEMPESTADE EM DIAS DE SOL

Voltei pra casa de mal humor na 2a feira a noite. Cheguei cedo do trabalho e saí pra bater perna por aí. Estava tudo bem. Mais à noite, bateu um mal humor do cão. Será que aquela chuvinha rápida que eu tomei no meio da tarde influenciou? (anotação mental: preciso parar de culpar a chuva por todas as minhas oscilações de humor, já tá virando clichê). O mais provável é que as trocas nos horários das minhas aulas já tivessem me irritado logo pela manhã.

Fato é que eu andava por aí, muito bem obrigado até o fim do dia e algo mexeu com os meus brios. Só pra piorar, moro numa esquina que concentra várias baladinhas GLS, o que não seria problema se o povo não saísse gritando e cantando pela rua, qualquer dia da semana, como na madrugada dessa 2a feira. Aí perdi o sono, voltei a dormir e acordei ainda mais mal humorado. Por sorte, a minha mulher desperta sempre com um sorriso no rosto. Tentei levar o dia numa boa, mas a minha primeira missão saindo de casa já seria um verdadeiro teste de paciência: fazer compras na Rua 25 de Março.


Somente duas coisas na vida podem superar tal horror: cartórios e repartições públicas. Confesso que nem fila de banco consegue me irritar mais do que tentar cruzar aquele mar de gente sem educação que se pisoteia para comprar artigos de segunda linha a preços suspeitos. Os artigos vendidos na rua merecem destaque antropológico: cápsulas de metal cuja única serventia é fazer um barulho irritante quando jogadas pra cima; canetas que dão choque!! (já vou avisando, se algum dia alguém tiver a idéia de se divertir me dando choque, vai ficar com a caneta entalada aonde dói).


Mas o pior ainda estava por vir. Próximo ao Mercado Municipal um camelô tenta apertar a minha mão. Passo batido e ele diz: "Não me conhece mais, né?". Olhei de volta e achei que ele parecia com um garoto que eu atendia na Febem, 3 anos atrás. Fui lá conferir e não era ele, mas o homem emendou o maior papo, já embrulhando num jornal duas pomadas que aliviam dor nas costas, etc e tal. Eu logo vi que era golpe e que ele ia querer roubar a minha mochila, ou me sequestrar. Foi me dando tudo de presente sem eu pedir nada. O tiro de misericórdia foi quando ele incluiu na oferenda uma terceira pomada, essa vermelha, pra passar na cabeça do pênis e castigar a noite inteira. Já aceitando o embrulho e dando os primeiros passos pra sumir dali, o homem diz: "O meu filho nasceu ontem, rapaz! Aí, deixa uma contribuição pra mim.". Eu ri da cara dele e disse, rangendo os dentes: "Quanta generosidade! Mas ó, nem rola, tá?".


No caminho de volta pro metrô, outro vendedor de pomada tenta me cumprimentar e diz: "Não me conhece mais, né?". Balanço a cabeça irritado dizendo: "Não! Não mesmo!".


Chegando no trabalho o dia flui melhor, sem mais queixas. Quando ELA me telefona, o meu humor melhora na mesma hora. Mas volto pra casa com a certeza de que a humanidade não presta. Continuo achando que estão pisando no meu pé. Uma pessoa que aguente o meu humor e ainda consiga sorrir, não deve ser humana.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

SORGE

O casal viajou separado na época do ano novo. Eles tinham muito disso, de compartilhar momentos maravilhosos juntos, de se amarem loucamente, mas não viviam exclusivamente um para o outro. Ambos sabiam no que isso implicava, ou achavam que sabiam, nem sempre isso era fácil de lidar, mas era assim que continuavam juntos e apaixonados. Estavam juntos havia poucos meses.

Ele viajou para Cuba e ela foi para uma vila de pescadores no litoral norte de São Paulo. Se correspondiam pelo celular, ele principalmente tinha a necessidade de tapar, metaforicamente, o abismo da distância concreta entre eles. Ela também estava com a cabeça nele o tempo todo, mas estava cercada de amigos e encontrava outras formas de se divertir.

Quando voltaram pra casa, viveram momentos tensos; trocas de acusações, cobranças, carências e revoltas. Não se sentiam mais um casal, a cada dia um dos dois trazia novas dúvidas e inseguranças. Nos poucos meses que compartilharam, ela já tinha apontado para a falta de sentido em alguns "acordos tácitos" que mantinham algum distanciamento entre eles. Algumas vezes ela pensou em romper, mas ele nunca suportou a idéia. Eram loucamente apaixonados. Depois do ano novo, esmagados pela estranheza daquilo que estavam sentindo, ela pediu de novo por um ponto final. Mas dessa vez ele aceitou.

Ele via a perda da intimidade nos olhos dela, todos os dias. Só pediu que não rompessem de forma drástica, pois dividiram momentos tão especiais naqueles meses, que julgou ser no mínimo respeitoso manter ainda algum convívio, dando mais liberdade para o outro (principalmente ele, para ela).

Aconteceu então de se encontrarem algumas vezes depois e logo perceberam que a paixão ainda era forte. Sentiam ainda a necessidade um do outro, do cheiro do outro, da pele, do sexo e do olho no olho que os mantinha quase hipnotizados. Reviveram momentos de tesão e entrega intensos, como na época em que se conheceram.

Ela só passou a questionar, com certa frequência, por que ele concordara em abrir mão dela. Isso gerou nela uma marca. Acreditou por algum tempo que ele já não a valorizava mais como antes. Ele desmentia, dizendo que nas últimas semanas sentia por ela o mesmo deslumbramento vivido na paixão inicial.

Ele acreditava e sintia isso na carne, que aquele "respiro" tinha feito bem principalmente para ela, que chegou a revisitar queridos do passado.

Ele faria de tudo para ver de novo um sorriso naquele rosto, para ver os seus olhos brilhando como estrelas. Aconteceu então que ela ficou muito doente logo em seguida. Com uma febre alta incessante, foi sozinha para o Pronto Socorro. Ele foi correndo encontrá-la e viu no mesmo momento, algo que já sabia há muito tempo: não podia mais ficar sem ela. Passou quatro dias cuidando da sua querida. Ouviu e acolheu todo o choro, a dor e a irritação que emanavam dela e que preenchiam todo o seu quarto.

A impressão que tinha era de que a Novalgina e o Tilenol faziam-na suar e expurgar todo o resto que o seu corpo retinha. Quanto mais ela se abria com ele, percebendo que seria acolhida incondicionalmente, mais suava e a febre baixava. As drogas químicas nada mais eram do que o
equivalente mais prático das ervas e raízes catalizadoras de processos xamânicos tão semelhantes.

Na última noite de febre ela ainda estava fraca. Ele deitou ao seu lado, olhou nos seus olhos e disse: "Eu não consigo gostar menos de você. Não consigo parar de te querer. Não consigo e não quero.". Ela pediu desculpas por qualquer palavra mais ríspida naqueles dias e agradeceu pelo cuidado que ele estava demonstrando com ela.

Ele não queria gratidão, nem arrependimento. Só queria poder ouví-la mais de perto, olhá-la mais de perto e cheirá-la mais de perto, com água na boca, como o lobo da fábula infantil, que devorou e se fundiu àquela mulher deitada numa cama.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

CADEIRA FENOMENOLÓGICA

Quando publiquei esse post no meu primeiro blog, logo depois uma amigona minha comentou algo do tipo: "E você está sentado, esperando o que acontecer?".


Sento-me nessa cadeira que já conhece tão bem as minhas nádegas e também a de dezenas de crianças que diariamente gritam, xingam, cantam, comem, cospem e são felizes por alguns momentos do dia.

Sinto-me nessa cadeira, como um embusteiro, como uma engrenagem do sistema que coordena essas crianças rumo ao abatedouro, com um largo sorriso de apresentador de programa de auditório e penteado com laquê, como aquele sádico mestre de cerimônias, encantado com a ingenuidade e credulidade dessas pessoas que raramente se revoltam enquanto assistem com um copo na mão ao seu time vencendo no futebol.

Sonho nessa cadeira, com a fuga que se prenuncia no limiar da clareira que só está aí porque aí está o vazio que acolhe, com a ruptura radical entre aquilo que é e aquilo que sou.

Corro para longe dessa merda de cadeira que quase acaba comigo ao atrever-se a mostrar as coisas que ainda não são, nesse vazio originário e cheio de cadeiras. Escolho uma delas para não ficar em pé, cansado de esperar.

Cansado de algumas coisas. Coisas que já aconteceram, mas eu nunca deixei de pensar nelas. Até hoje as dúvidas me incomodavam, mas tudo parece bem claro. Algumas coisas não são nada além daquilo que são.

TESÃO GRÁFICO

Um dos primeiros posts que escrevi, em 2003. Mas dei uma melhorada na escrita.

As imagens me fascinam. Sou completamente tomado pela percepção de designs, fachadas, lay-outs, animações, tratamento fotográfico, HQs e sabe-se lá o que mais...

Quero estudar a Fenomenologia da Percepção... símbolos são mais do que imagens, eles remetem-nos à nossa história, e ao mesmo tempo, àquela história de todos nós.

Ok, as imagens que nos cercam no dia-a-dia têm pouco de simbólico, como a propaganda política ou os comerciais de cerveja e shampoo. Ainda assim, são sempre releituras daquilo que se mostra imediatamente apreensível no cotidiano social.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

LÁPIS E CANETA

Mais um daqueles textos que me vem na cabeça e gritam p/ serem escritos, sempre vêm em intervalos de trabalho; esse foi num intervalo de atendimento na clínica num sábado de manhã, ainda erm 2003...

A facilidade da tinta, correndo fluida pelo papel macio, versus o labor de manter um grafite afiado, seu atrito abrindo sulcos na maciez do papel, deixando sua marca ao longo dos anos, naquelas mesas e escrivaninhas que há muito nos acompanham.

O caráter marcante na fluidez da tinta, o treino e atenção, o evitar o erro e o registrar a palavra em definitivo. Do outro lado, a rispidez do grafite que borra, uma escrita cheia de atritos, que nos leva a voltar atrás, apagar, corrigir e, por fim, esperar que o tempo clareie a sua presença, mantendo assim somente os seus rastros.

Os usos e desusos nas mãos das crianças e dos artistas, de todos aqueles que nos trazem a abertura para outros mundos, para aqueles mundos que são sempre o nosso próprio outro.

O RETORNO

Esse texto eu acho que escrevi num tempo livre que eu tive lá na FEBEM (trabalhando), provavelmente lá por março de 2003. O texto não tem nada a ver com isso, mas é interessante que eles (os textos) sempre me cobram que eu os escreva, quando eu estou ocioso no trabalho, seja no hospital, na clínica, onde quer que seja.

O fluxo incessante, orgasmático e caótico da existência coletiva em suas formas mais civilizadas, o sufocante momento quando parece não haver mais saída, alternativa ou cura para tudo o que bloqueia, interrompe, encerra e enterra a minha razão de ser.

O peso de saber que a caminhada é pesada, seca ensolarada e molhada tempestuosa, que o beijo da suave brisa me estimula a buscar aconchego no coração do vendaval.

A memória, a saudade e a lembrança, as Três Fúrias filhas da conservação do tempo no qual a natureza permanece sempre ela e não mais ela mesma. A trindade daquilo que já foi e já era, daquilo que nunca mais será como em outro dia; o retrato, o impacto e a pintura carregados com o forte cheiro do ontem, do hoje, de amanhã, poeira e orvalho, cheiro de passeio no parque e de cachorro latindo.

O retorno, sem menção honrosa, do soldado desconhecido, de calças vermelhas e fumaça na boca, sal na barba e éter no coração. O retrato em seu olhar, de coisas e do mar, o impacto da fumaça em sua morada, a pintura da bela mulher por quem um dia prometera a lua, o mar e a estrela cadente mais brilhante.

DIÁRIO DE GUERRA

Esse texto é um mistério; eu escrevi alguns desse estilo quando estagiava no Hospital das Clínicas, em 2001. Mas esse tem data de 2002 e eu lembro de ter escrito ainda no HC. Fica o mistério.

DIÁRIO DE GUERRA
6/2/02 - A situação está chegando num ponto em que não diferencio mais desejos e necessidades. Tudo parece um louco delírio, etéreo e fora de foco.

O pior momento parece ter passado, a sensação de estar preso nesse lugar é mais aterrorizante do que qualquer cena de violência brutal jamais presenciada. Aprendi a aceitar a brutalidade como reflexo de nossa condição animal, reflexo que só pode ser extravasado desse modo, ou de outros modos mais danosos, quase sempre levando a vícios ou à eterna insatisfação.

A realidade me esbofeteia até conseguir me tirar da realidade, me sufocando, puxando para todos os lados, levando o meu raciocínio ao limite da extinção. Mas o pior momento já passou, hoje consigo, como antes de estar aqui, transitar por entre momentos, fatos e lugares, de fato.

A claridade dá pistas para sair dessa mata fechada, os inimigos ainda estão em cima de mim. O desespero já não é meu vizinho, reconstruo o meu tempo, a saída está lá, mas não carregarei os inimigos nas costas. Inteligência, tenho que usar; violência, se precisar, o jogo ensina a perder e ganhar.

Quarenta e quatro minutos de jogo, fôlego baixo, mas reflexão em alta. É só o fim do primeiro tempo.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

BAILE DA SAUDADE

Minha linda,

quero que você saiba que desde que eu peguei a estrada para Ribeirão Preto, eu já sentia a sua falta. Reparei como me sinto diferente quando sou eu quem deixa a cidade, te deixando sabe-se lá por onde. Você fica faltando em mim, o seu cheiro falta na minha pele e essa falta aumenta muito na estrada, no aeroporto ou no lugar de destino, seja no interior do estado ou nas praias do nordeste.

Queria muito falar contigo de lá, principalmente no dia da festa, mas foi bem nesse momento que fiquei sem créditos no meu celular. Já notou como eu sempre perco de te dizer algo especial por falta de crédito? Li em algum lugar que cerca de 80% dos aparelhos celulares vendidos no país são pré-pagos. Por que então eu me sinto mal toda vez que busco essa aproximação e me é negado esse direito?

Eu fui registrando mil coisas que queria te contar, nem que fosse assim, por escrito e com mais calma, mas você bem sabe que a minha memória me prega peças o tempo todo, né? Tinha o nervosismo do noivo, o garçom que me privilegiava nas doses de uísque, as pessoas conhecidas do tempo da faculdade, a garota que xavecava 2 amigos ao mesmo tempo e tantas outras coisas que me faziam rir. E outras histórias, teve o pessoal do hotel, muitos chegando para a mesma festa, tinha o hotel em si que parecia um daqueles condomínios populares americanos em Las Vegas, ou em Miami, com 2 andares e uma longa extensão de dormitórios geminados.

E tinha ainda aquelas coisas mínimas que me faziam pensar em você o tempo todo. Como quando me vesti para a festa e me senti com ares de advogado, com aquela roupa que me incomoda, mas que eu tenho certeza que você aprovaria. Pensei nos seus olhos brilhando de animação, talvez depois você dirigiria olhares mais zelosos ao me ver entornando incontáveis doses de uísque ao longo da noite. E que não teria pena de mim quando eu contasse que perdi o óculos e algum dinheiro na festa, e então eu aceitaria que paguei o preço justo pelo tanto que me diverti.
Mas te escrevo mesmo, no final das contas, para que saiba que eu não te esqueço, que o seu sorriso sempre me traz de volta pra você (principalmente quando você sorri com os olhos) e que quando estamos juntos, não existe um dentro de mim ou um dentro de ti, o que existe somos nós no mundo, um "Eu e Tu" (muito cyber-sein?).

Beijos em você, minha menina. Não de despedida, pois querendo ou não, te levo comigo pelo país todo.

CARTA A UM NOVO AMIGO

Caro M.,
espero que tenha voltado bem de viagem. Espero que você e a sua esposa estejam melhor agora. Rapaz, me desculpe por ter esquecido o nome da sua cara metade mais uma vez. Temos nos visto muito pouco nos últimos tempos, não é? Eu nem sabia que você estava nessa fase da vida. Sabe, passei a sentir uma afinidade maior por você agora, pois até isso estamos compartilhando, descobrindo juntos. Ambos entramos nessa fase no último ano, na fase de viver a vida a dois. E ainda estamos quebrando a cabeça para nos afinarmos com as surpresas que isso nos
traz.

Sabe do que estou dizendo, não é? Tenho conversado com outros homens recém casados ou recém "juntados", como nós, e o que mais escuto é sobre as brigas constantes. Não ouvi ninguém se queixar de dinheiro, de problemas com o vizinho ou com a sogra... o problema universal para nós, recém ingressos nesse barco, é o excesso de discussão pelas razões mais banais.

Tentei te falar um pouco disso no casamento do nosso amigo (o próximo que vai descobrir em breve a diferença brutal entre namorar a vida toda ou viver junto por mais de um mês). Tentei, no meio da festa de casamento do nosso caro colega, te dizer que essa fase deve passar, deve melhorar, mas que vai exigir que você e a sua esposa possam se abrir sem se ofenderem. Olha só, você sabe que eu nem a conheço, não é? E só você pode me dizer o que viu, ou o que pareceu aquilo que te deixou furioso na hora. Mas será que agora faz mais sentido o que eu te disse? Que ela estava lá com você e por você? Que se você escolheu viver a vida a dois com ela, é difícil crer que você tenha se enganado daquele jeito que te pareceu?

Será que foi muito esquisito eu ter chorado no seu ombro quando era eu quem estava lá para consolar você? Tentei te dizer que esse é um momento das nossas vidas que tende a melhorar. Sempre ouvimos falar das tais dificuldades do casamento e tínhamos a pretensão de achar que sabíamos muito bem que dificuldades seriam essas. Acontece que não sabíamos de nada; e não haveriam dificuldades se elas já fossem todas previstas. Não fizemos um investimento seguro, meu amigo, mas investimos no que acreditamos e isso fez todo o sentido naquele momento. Será possível que em tão pouco tempo possamos ter certeza de qualquer desgraça?

Compreendes? Imagino que sim. Não tive a oportunidade de ter a mesma conversa com a sua esposa, mas o rosto dela dizia tudo. Dê um voto de confiança, estava na cara que ela te ama, que sofreu pelo mal estar provocado ali e que não faria nada que desrespeitasse o compromisso que vocês assumiram juntos. Quando te empurrei para dentro da van, fiquei preocupado que você deixasse ela voltar sozinha para o hotel e que a situação piorasse no dia seguinte. Não sei se você preferia deixar para falar com ela com a cabeça mais fria, no dia seguinte. A minha aflição não deixou que você escolhesse por si mesmo. Mas também não achei que você devesse tomar muitas decisões por vontade própria naquele momento. Se acertei ou se só te enrolei, não posso saber agora, mas fiquei satisfeito por ter te convencido a entrar na van e pelo menos, voltar junto com ela.

Por último, só para ficar registrado, quero que saiba que eu teria dito tudo aquilo mesmo se não estivesse com a cabeça cheia de uísque. Tenho certeza disso. Como já falei, são situações muito parecidas que estamos vivendo na mesma época e eu também me deixo dominar pela emoção, não raras vezes. Mas precisamos, eu com a minha companheira e você com a sua, descobrir formas de nos comunicarmos, mesmo que de forma desequilibrada e emotiva, mas ainda com carinho e entendimento.

Abraços do cara que está sempre por aí, cada vez mais torcendo por ti.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Trabalho dá trabalho

Entrevista de trabalho pelo telefone, para uma empresa internacional de tecnologia, com a entrevistadora direto dos EUA.

Tenho que falar da minha experiência de trabalho em equipes multidisciplinares, da minha experiência com jovens e adolescentes, nas áreas de saúde e educação, principalmente em educação. Da minha habilidade com ferramentas de avaliação (evaluation tools) e com a elaboração de relatórios (assessment reports).

Da minha bagagem intelectual, aproveitando pra destacar a minha pós-graduação em Escolarização e Diversidade, onde apresentei a monografia (presented the monography) “A construção da identidade dos adolescentes nas comunidades virtuais”. Além disso, o mestrado que estou cursando, com o projeto de pesquisa: “Análise sobre novas formas de socialização mediadas por jogos eletrônicos.”.

Sim, tudo isso deve ajudar. Ainda mais se ela abrir espaço para eu falar das minhas outras atividades pessoais, como os 2 blogs que mantenho (a empresa dela desenvolve isso também, boa!) e o meu gosto por street art, grafitti, graphic novels e afins. Pela descrição no site do ambiente de trabalho deles, se eles tiverem o interesse de me contratar, será como juntar a fome
com a vontade de comer. Se eles quiserem me contratar.

Aí entra o que não está no currículo, mostrar segurança e entusiasmo com essa oportunidade que está aí, aberta e circulando no mercado. Yes, I am skilled for this opportunity. I am excited and don´t know what else to say. Acabo já trabalhando com a hipótese de não rolar. Mas quero que role. Quem não ia querer o trabalho que eles me ofereceram? Bem, quem tiver outro melhor. Por isso fica parecendo que essa oportunidade é do meu tamanho certinho. Great expectations...

sábado, 19 de janeiro de 2008

Só coloquei o contador agora. Vai dar uma conta meio mentirosa, já que o blog já está sendo visitado. Pra não ser muito otimista, eu acrescentaria uns 10 acessos a mais.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

INSTRUÇÃO

O rapaz completa 18 anos e corre para a auto escola. A maioria dos seus amigos já tinha a carteira de habilitação, ele era o mais novo do grupo. Já estava na faculdade e se lembrou de que no colegial, quando alguém dizia que já podia dirigir, isso dava um status absurdo. Agora na faculdade, poder dirigir era o mínimo para dar conta da sua rotina de estudos, estágios, academia, baladas, namoro e viagens para o litoral norte.

Foi entrando logo na auto escola mais próxima da sua casa, um lugar que não inspirava muita confiança, mas pelo menos era barato. A cada aula lhe indicavam um novo instrutor, cada vez num carro diferente. Não achou ruim, pois queria mesmo dirigir a maior variedade de carros possível. Na segunda aula, uma moça jovem, morena e toda falante veio com um Corsa e ele deixou o carro morrer.

- Não liga não, acontece. É problema da embreagem, você tem que ir fundo.

Naquela aula ele aprendeu a ir fundo com aquela instrutora. Mas na aula seguinte, foi encaminhado para um tiozão na faixa dos 50, que levou-o até um Fiat Uno, estranhamente estacionado fora da auto escola. Mas o que chamou a sua atenção foi uma mulher no banco de trás, que acompanhou-os durante a aula toda. O instrutor ia dizendo laconicamente, "estaciona ali", "dá a volta, olha a placa de PARE". Mas as instruções eram as mínimas necessárias, já que ele estava muito mais ocupado com a discussão que levava em paralelo com a mulher no banco de trás.

- Eu não quero saber, eu fico confiando e você nunca vai ver a sua filha, não sabe do que ela tá precisando.

- Eu não te falei que ia antes do Natal? Não fui lá levar ela pra passear?

- Olha, eu tô dizendo que você tem que parar de falar tanta mentira, eu fico dependendo de você pra resolver certas situações e você some.

- Eu só sumi quando disse que precisava fazer aquele carreto...

E assim prosseguiu. O rapaz manobrando, dando seta, atento a tudo e ao mesmo tempo imaginando: "É muita cara de pau trazer a ex-mulher pra ficar lavando roupa suja aqui, né? E ela também nem se intimida, vai falando de tudo na minha frente, tá cagando e andando. Puts, ter ex-mulher já deve ser treta, ainda mais um cara desses despreparado pra tudo na vida".

Do auge dos seus 18 anos ele observava e analisava. Antes de entrarem na avenida Pacaembu, retornando para a auto escola, ela diz que vai descer. Nos poucos quarteirões de volta, o instrutor puxa conversa com ele.

- Você tem namorada, garoto? E você é fiel? Não tem outras por aí? É... escuta o que eu te digo então, nunca deixe a sua amante engravidar, tá ligado?

O rapaz percebeu então que a situação era bem diferente da que ele julgava, ainda mais tenebrosa (assim ele pensava). As últimas instruções daquele dia foram:

- Se você tiver uma amante, fica com ela enquanto vocês se divertirem juntos, não fica arrumando problema pra cabeça. Ah, e não conta lá na auto escola o que aconteceu, beleza?

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Horizonte

O seu corpo tem uma beleza que não se encontra nas academias de ginástica, nem nas capas de revista. O seu pai não exitaria em dizer sem pudores que ela não é nenhum padrão de beleza.

Mas ela encanta pela pele morena, pela carne macia e o cheiro marcante. Quando está alegre, o brilho que irradia nasce no seu olhar, mas se espalha por todo o seu corpo.

O corpo do seu amante é branco como a lua em certos períodos e todo pontuado por sinais ou pintas. Ele tem ombros largos e braços que cobrem a sua amada por inteiro. As marcas que pontuam o seu corpo formam perfeitas constelações.

Quando ela se deita, o seu corpo é como o mar, fluido e suave, mas em atividade intensa. Ela ofega e chama para si o corpo dele, que a envolve toda, como o céu estrelado. O céu iluminado por uma lua pálida, essa clareza percorrendo cada ondulação do mar abaixo de si.

Para quem visse a distância, não seria possível distinguir no horizonte da noite os limites entre céu e mar. Somente eles se reconhecem ao se misturarem, ele explora cada ondulação que vibra abaixo enquanto ela é acariciada pelo véu estrelado que nada deixa de fora.

De acordo com os ciclos da lua, ela se exalta ou se retrai, cobrando do véu estrelado acima que se manifeste mais, que dê provas da sua devoção e da sua cumplicidade. As primeiras oscilações da maré levaram a tempestades repentinas e o clima tempestuoso fez com que o céu pesasse desconfortável sobre o intenso movimento da maré.

Mas conforme as estações se repetem e as turbulências e retraimentos vão e vêm, os elementos encontram a sua harmonia no desejo de cada encontro.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

No metrô

Ele pega o metrô logo pela manhã e segue para o trabalho. Geralmente com um livro na mão, ou com fones nos ouvidos, ele sempre acaba se distraindo e com a mente mais solta, é como se um oráculo lhe revelasse algumas grandes verdades da sua vida, tal qual num mito grego.

Quando se apaixonou pela última vez, continuou pegando o metrô e lendo seus livros, ou escutando as suas músicas, mas sem aviso prévio passou a ter ereções enquanto viajava sentado no vagão do metrô. Nem precisava pensar na pessoa amada, não precisava evocar nenhuma memória; a sensação estava registrada em cada nervo do seu corpo.

Depois disso veio a fase analítica, na qual ele pensava o tempo todo na pessoa amada e isso o remetia a questões que discutira, anos antes, com sua analista. Questões edipianas, narcísicas, carências existenciais, desejos ambíguos e o resto do cardápio todo. Tinha esses insights, no
metrô, que sempre o pegavam de surpresa; chegava em casa e logo telefonava para a sua musa inspiradora, contando sempre não mais do que a metade das revelações do dia. Sempre achava que tinha um lado que deveria permanecer não dito. (Ela me suportaria por inteiro? Já não sou
demais assim como estou?)

Por fim, entrou na fase intuitiva, na qual ambos já se conheciam um tanto e se afinavam, um sempre se ocupando das questões do outro. Ele percebia que nunca estavam em posição de igualdade naquela relação. Quanto menos ela exigia na relação, mais ele temia perdê-la. E quando era ele que se dava por satisfeito, ela logo se punha a sofrer pela incerteza do amanhã. Não viviam juntos mas, naquela semana, se viam quase que diariamente. Num dia desses ela mandou um recado pelo celular só para mostrar que tinha acordado cedo e sentia saudades. Ele ligou de volta e conversaram até que ele teve que correr para o metrô novamente. Quase no fim do trajeto, o oráculo lhe esbofeteou novamente. "Puts, toda vez que ela fica assim tão carinhosa, tão apaixonada, é o princípio de uma crise. Como ela ficará depois disso?". No fim do dia, ele foi jantar na casa dela e a profecia se fez como previsto. Ela sofria sempre a inconstância daquela relação, apesar de todo o amor, carinho, confiança e cumplicidade que dividiam. E naquela noite eles souberam que não havia mais relação, pois os sentimentos que tinham um pelo outro os desestabilizava sempre mais. Ele foi embora no meio da noite pensando que não deveria andar tanto de metrô, a não ser quando estivesse excessivamente bêbado.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

De virada

Eles se conheceram numa festa, perto da época do aniversário dela. Ele foi no aniversário e lá estava ela com outro homem. Mas ambos sabiam que viveriam alguma coisa muito boa juntos e assim aconteceu. De lá até o fim do ano, se foram alguns meses de alegrias, carinhos, êxtases e gozos, junto com toda a dor e a fúria que uma paixão fulminante necessariamente traz.

Modernos que eram (ou queriam ser), mantiveram uma relação aberta, com tempo de sobra para outros parceiros, incluindo aí o ex-namorado dela. Quando o natal já era assunto entre eles, começaram a planejar os dias que passariam juntos até que cada um viajasse para um canto diferente. Ele iria de ônibus para o sul do país e ela, de carro, para uma praia no litoral norte de São Paulo. Até o natal, viveram uma paixão intensa, uma entrega que mataria qualquer um de inveja. Gozo e sofrimento misturados, ela perguntando como poderiam se fundir num só e ele já sentindo o aperto no peito pela viagem que os separaria.

Certo dia, ela falou: "Nego, fica contente vai, isso vai fazer bem pra nós. Eu vou voltar morrendo de saudades, te quero demais". Passado o natal, no dia da despedida eles estavam na rodoviária e ela tentava animá-lo: "Nego, você tá indo pra praia! Vai curtir o ano novo num lugar lindo!". Ele nada respondeu, virou o rosto enquanto andavam, engolindo as lágrimas que já queriam subir para os olhos. Sabiam que ficariam incomunicáveis por uma semana ou mais.

No dia 1o de janeiro, ele conseguiu ligar de um telefone público perto da praia e por 7 vezes tentou falar com ela. Mas ninguém atendia. No dia seguinte ele já estava de volta a São Paulo e ela ligou no seu celular. "Nego, tudo bem? Eu não estava em casa quando você me ligou ontem. Como você está? Estou morrendo de saudades de ti, meu querido!". Ele já engolia as lágrimas mais uma vez, dizendo que não estava aguentando mais a distância, que não podia mais ficar sem ela e que queria vê-la assim que ela voltasse, no final do próximo dia. Ela garantiu que ligaria para ele quando chegasse e ele ficou esperando.

Dois dias depois, ainda sem contato, ele vasculhou e-mails, orkut, mensagens no celular e não havia nem sinal de vida dela. Como sabia que ela tinha chegado na noite anterior, ligou do trabalho para a casa dela.

- Pretinha?

- Oi querido, posso te ligar em 1 minuto?

- Claro. Te acordei?

- Hum... mais ou menos. Já te ligo.

Uma hora mais tarde ele já estava nervoso, sentindo que algo não ia bem desde a virada do ano. Ele liga mais uma vez.

- Sou eu, Pretinha!

- Ai Nego, posso te ligar em 1 minuto?

- NÃO, NÃO PODE! ESSE 1 MINUTO JÁ DUROU MAIS DE 1 HORA!

- Puts, sério? Que horas são?

- Você ainda está dormindo?

- Hum... na verdade não.

Conversaram então, mas ela não quis prolongar o papo pelo telefone, queria vê-lo pessoalmente. Disse que ficara acordada até as 6 da manhã, apesar de não ter entrado na internet. Conhecendo a sua Pretinha o suficiente, ele estranhou e ficou constrangido em perguntar com quem ela poderia estar, pois não era segredo que a relação de ambos não era de exclusividade.

- Hoje eu não posso te ver - disse ele -, tenho reunião até de noite. Posso passar aí amanhã e te acordar?

- Pode sim, querido. Te espero amanhã.

No dia seguinte ele, todo apaixonado, foi cedo para a casa dela, ansioso pelo reencontro mais que tardio; queria ter nas suas mãos aquele corpo bronzeado e queria dizer a ela o quanto estava apaixonado. Assim que chegou, se beijaram, contaram de suas viagens um para o outro, tudo com muita felicidade e cumplicidade. Nesse ritmo, logo estavam nus e ele perguntou: "Cadê aquelas nossas camisinhas?". Ela constrangida, acabou abrindo o jogo:

- Quando eu voltei da praia, fui direto para a casa do Rick (o ex-namorado).

- Eu já imaginava minha Preta, eu sei que quando te liguei do trabalho você estava com ele aqui, sei que vocês passaram o dia juntos.

- Nego, eu dormi com ele já na noite em que cheguei.

- Você disse que ia me ligar...

- Sim, mas ele acabou me ligando também, disse que estava morrendo de saudades e que queria tanto me ver...

- Ah tá. E eu!? Eu não te disse isso tudo também? Você não disse que estava louca pra me ver? O que quer dizer isso agora?

(Semanas antes de viajarem ele imaginou isso tudo acontecendo.)

- Qualé Nego!? Se você tivesse me ligado, eu teria te encontrado sem nem piscar, mas quem me ligou foi ele!

- Ah, e agora a Dona FLor vai falar comigo desse jeito toda grossa?

- Desculpa. Eu não quis...

- Eu me sinto UM IDIOTA vindo aqui todo alegre atrás de você. E você acabou de dormir com ele, de novo né?

- Foi sim... eu estou dormindo com o Rick desde que voltei.

- Vocês voltaram, né? Por que não me diz que vocês estão juntos?

- Porque não estamos. Ele quer ter mais autonomia. Eu estava numa fase confusa quando terminamos. Ele fica com outras pessoa também, assim como nós.

- Eu não vi um motivo que tenha partido de você. Parece que não foi você quem quis esse término. Parece que eu estou forçando a barra no meio de vocês dois.

- Nego, nunca mais diga isso! Você não sabe como eu fiquei feliz quando você disse que vinha. Como eu fico feliz de você estar aqui comigo!

- Eu não sei mesmo. Você não me telefonou uma única vez e eu quase implorei pra você não desligar na minha cara ontem. Nem um e-mail, nem nada!

Aos poucos eles voltaram a se entender, ele percebia que criara muitas expectativas em cima de uma relação que nunca comportara esse tipo de entrega e ela assumia que não sabia bem o que estava fazendo, que viajara para se distanciar dos seus dois casos mais fixos e na volta já se envolvera numa situação mais do que estranha por causa deles.

No fim daquele dia ele pediu que ela o levasse de volta para casa. Sabendo que não passariam a noite juntos, ela liga para o Rick. Deixa o Nego na porta de casa dizendo "Você é o meu amorzinho, eu quero te ver de novo o quanto antes". Na sequência, passa na casa do ex-namorado para passar mais uma noite junto com ele.