quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

MEU PRIMEIRO MICRO CONTO

Publicado em 2003, sob encomenda para a revista PSYU, que era meio que minha mesmo, rs.

Todas as noites ele devorava o seu jantar, arrastava a cadeira dando um forte empurrão para trás e podia-se ouvir a palavra "Liceensa!" ecoando pelo corredor que levava ao seu quarto. Como estudava de tarde, havia tempo suficiente para fazer suas lições no dia seguinte.

A noite era o único momento quando podia entregar-se à sua grande paixão: as estrelas. Tinha já quatorze anos completos e seus pais nunca repararam no brilho em seus olhos mirando alto no céu; o mesmo brilho daquele bebê recém nascido, a contemplar os móbiles coloridos que se moviam vagarosamente acima do berço. Todo fim de tarde ele voltava da escola andando - cinco ou seis quadras que lhe rendiam bons diálogos - acompanhando a jovem Diana até o ponto de ônibus, de onde ela só chegaria em casa meia hora depois.

Andavam sob o pôr do sol e certa vez, ela foi puxada pelas pontas dos dedos. "Você vê aquela luz lá onde já escureceu?" Ela sempre se interessava pelos devaneios daquele garoto e começava a perceber que gostava de passar aquele tempo ao seu lado. E como acontecia todos os dias, o anoitecer conduziu cada um para a sua casa. Mas naquela noite algo mudou; Diana ouvia música em seu quarto cheio de pôsteres nas paredes e sua mão aproximava-se do telefone.

Ele já jantara e caminhava para o quarto quando ouviu o telefone tocar. Sua mãe vem bater na porta para avisar que uma menina quer falar com ele. Mal sabia localizar o telefone no seu quarto, nunca atendia, nunca recebera uma ligação. "Ah... hum... alô?" Ele ouve a voz de Diana e escuta tudo o que ela diz, mas não entende porque aquela conversa não poderia ficar para o dia seguinte, quando se encontrassem depois da aula. Naquela noite ele foi dormir sem olhar para as estrelas.

Em seus sonhos, um céu negro como nunca se vira, coberto por um manto de estrelas que brilhavam com tamanha intensidade, que pareciam estar ao alcance dos seus dedos. Era o mesmo sonho todas as noites. Sempre via-se de pé em cima do telhado a admirar aquela luz branca-azulada. Mas naquela noite algo mudou; quando se deu conta, era Diana quem observava tudo de cima do telhado. Seu lugar já não era mais ao lado dela, já não conversavam mais. Encontrava-se agora sentado sobre o parapeito da janela do quarto, de modo que podia vê-la radiante na beira do telhado. Quando acordou, percebeu que já estava sentado na sua carteira, assistindo a última aula do dia.

Ia andando com o caderno embaixo do braço e olhando para o céu, mas nesse dia ele viu o céu nublado e nenhuma estrela se destacava. Diana encontrou-o e enquanto andavam ela percebeu que ele não olhava mais para cima.

"Dormiu bem essa noite?"

"Como? Quer dizer, não sei. Foi uma noite estranha."

"E isso é bom?"

"Como?"

"Teve bons sonhos?"

"Sonhos estranhos. Acho que bons. Parece que sim."

Ela ainda estranhava o silêncio dele, começava a pensar que não devia ter telefonado, que agora ele a trataria como fazia com todas as pessoas, com total indiferença. Também não queria incomodá-lo com um interrogatório, mas não sabia mais o que pensar. Foi apertando o passo, como se quisesse que aquele dia terminasse logo. Foi quando ouviu:

"O que você estava ouvindo ontem?"

"Quando?"

"Ontem, quando me ligou. O que estava escutando?"

"Ah, um disco da Cassia Eller, conhece?"

Ele fez que sim com a cabeça, como quem já tivesse algo mais em mente. Naquela noite, depois de jantar, andou calmamente até o quarto e ligou o rádio. Passou o resto da noite escutando e olhando para o telhado. Pensava se Diana também estaria escutando as mesmas músicas, sem saber que ela não escutava nada, apenas olhava para o alto, parada em frente da janela.

5 comentários:

disse...

era uma revista de psy?

Anônimo disse...

depois vc conta do seu primeiro micro ponto?
estamos no aguardo.

Anônimo disse...

Fe, era uma revista de psicologia, feita por estudantes e profissionais jovens, para estudantes, professores e profissionais inovadores.

Anônimo disse...

Se fosse um lance de psy trance talvez rolasse um micro ponto, rs. Quem sabe eu não invento alguma coisa ssim pra contar? Sugestão anotada...

Unknown disse...

Gostei! As estrelas são mesmo um prato cheio para mil contos, pontos e sonhos.